Desde quando foi lançada em 2017, The Handmaid's Tale tem emprestado o figurino das aias composto por capa e touca para protestos ao redor do mundo. Os manifestos são a favor das mais variadas propostas, mas todos vão em busca de melhores condições de vida das mulheres na sociedade. 

Tudo começou nos Estados Unidos, onde a série estreou primeiro. Lá The Handmaid's Tale chegou em um momento oportuno, os ânimos estavam acalorados com a vitória de Donald Trump para presidente do país mais poderoso do mundo. Do Texas à Califórnia e até a capital Washington, mulheres usavam os trajes de aia para protestar contra retrocessos nos direitos reprodutivos das mulheres e sistema de saúde da gestão Trump. Antes de ir para o encontro do G20 na Alemanha em abril de 2017, o presidente dos Estados Unidos fez uma rápida passagem pela Polônia. Lá foi recebido por uma multidão em protesto ao seu governo, uma parcela vestida de aia.

Um dos primeiros grupos de mulheres a realizarem movimentos do tipo foram o Texas Handmaids. Foram elas que organizaram os primeiros movimentos em frente à Casa Branca. O grupo persiste até hoje, recentemente denunciando clínicas clandestinas de aborto nos Estados Unidos. Outra organização é a Hollywood Handmaids, responsável pelos movimentos nas proximidades das grandes cerimônias de premiação Emmy 2017 e Globo de Ouro. 

Chegando em 2018 os debates sobre legalização do aborto foram aumentando e as mulheres vestidas de aia acompanharam o crescimento das discussões e audiências públicas, principalmente na Argentina. Lá as mulheres acompanharam as votações no final de julho desse ano na Câmara dos Deputados, onde a descriminalização do aborto até a 14ª semana de gestação foi aprovada, porém no último dia 9 de agosto, ao passar pelo Senado Argentino a lei foi derrubada por 38 votos contra e 31 a favor. Nem a mensagem de apoio a aprovação da lei enviada por Margaret Atwood à presidente do senado mudou a situação das argentinas: 

"Não ignore as milhares de mortes que ocorrem a cada ano por abortos ilegais. Dê às mulheres argentinas o direito de escolher. Neste momento, as mulheres na Argentina estão lutando por seus direitos e suas vidas. Se a Irlanda pode fazer, a Argentina também pode", disse a autora do livro que inspirou a série.

No Brasil a pressão pela liberação do aborto também é grande, onde hoje só é permitido em casos de estupro, quando a gestação apresenta risco à vida da mãe ou se o feto for anencéfalo (sem cérebro). Mas, enquanto lá o debate aconteceu no Congresso, aqui a discussão entrou na pauta do Supremo Tribunal Federal, a partir de uma ação proposta pelo PSOL em março de 2017. O partido argumenta que a criminalização da interrupção voluntária da gravidez deve ser considerada inconstitucional por ferir os direitos da mulher à cidadania e à dignidade humana.

A Corte acaba de realizar dois dias de audiência pública para ouvir opiniões contra e a favor do pedido do partido, que defende a liberação da interrupção até a 12ª semana de gestação. A ministra relatora do caso, Rosa Weber, agora vai reunir os argumentos dos dois lados em um relatório e preparar seu voto, para então liberar a ação para julgamento. Nos dois dias da audiência um grupo de mulheres fez vigília enquanto o STF ouvia as propostas.



Falando sobre aborto

The Handmaid's Tale é notória por expressar problemas existentes na vida de todas as mulheres, unicamente pelo seu gênero, e nos fazer refletir sobre o quão longe esses podem chegar. Reforçando isso, o mundo distópico criado por Margaret Atwood é um meio efetivo de lembrar o porquê de precisarmos do feminismo e a importância de lutar por essa causa que é o ponto de separação entre o tratamento dado as mulheres na atualidade, melhor que no passado mas não o suficiente, e como não deixar que essa situação seja a nossa realidade no futuro. 

Um dos assuntos polêmicos que divide opiniões e que tem um protagonismo tanto na série quanto nas discussões atuais é a questão do aborto. É muito evidente que em Gilead, uma nação em que os direitos da mulher são cerceados de todas as formas, principalmente naquilo que se refere ao seu próprio corpo, o aborto é considerado o pior dos pecados. Esse quadro é agravado pelo contexto de esterilização em massa, que é a justificativa usada pelo grupo religioso extremista detentor do poder para que a mulher seja obrigada a cumprir o “papel biológico” que, segundo sua concepção, Deus designou a ela. 

Tal conjuntura vista na obra, exposta acompanhada de cenas de estupro e total abuso causam uma comoção e indignação imediata no telespectador, que em sua maioria concorda que nenhuma criança deveria ser gerada dessa forma e que, muito menos, mulheres deveriam ser obrigadas a isso. Porém muitos dos mesmos que julgam esse cenário como terrível acabam por não perceber que de certa forma essa atrocidade está logo ali fora, assim como sempre esteve. Afinal, o direito da mulher ao aborto não é constantemente negado no Brasil, através de uma legislação datada de 1942, apoiada popularmente principalmente sob pretextos religiosos? Inclusive em muitos casos de estupro, já que mesmo sendo uma exceção na lei, a vítima passa por um julgamento para ser permitida ou negada ao direito, como foi o caso no Piauí de uma criança de 11 anos constantemente abusada pelo padrasto desde os 8, que em março do ano passado foi obrigada a seguir com a gestação sob justificativa de se encontrar na vigésima quinta semana.

De qualquer forma, o que mais reverbera é o modo como o poder da mulher de decisão sobre si mesma é constantemente negado, tendo que ver sua vida ser guiada por homens, muitas vezes apoiados até mesmo por outras mulheres com concepções diferentes, como é demonstrado na série pelo antagonismo das ‘aias’ e das ‘esposas’. 

No contexto atual, é importante observar que a maior parte dos países em que o aborto ainda é criminalizado são latinos e africanos, e o mais alarmante é que justamente esses países são os que possuem o maior números de procedimentos, feitos em péssimas condições que resultam na morte da mulher ou no mínimo geram sequelas para o resto de sua vida, tanto físicas quanto psicológicas. Baseado nisso, não há como não atestar o retrocesso, já que esses mesmos países que sustentam essa legislação têm o passado marcado pela herança do abuso à mulher, oriundo da colonização, em que as nativas da América Latina e da África passaram séculos sendo subjugadas pelo homem branco, de religião e cultura ‘superiores’. E o contraste ainda aumenta quando se pensa que os mesmos povos tidos como desenvolvidos, que atrás na história exploraram essas regiões, hoje têm em sua maioria o aborto como prática descriminalizada, tendo menos números de caso, e possibilitando condições humanizadas para mulheres que passam pelo procedimento.

Assim, vemos que infelizmente ficção e realidade andam extremamente entrelaçadas no que se diz respeito a essa questão. O objetivo dessa reflexão não é ser pró-aborto, mas sim a favor do direito de cada mulher de decidir sobre si mesma, de que em um Estado considerado laico como o Brasil, preceitos religiosos de determinados grupos não sejam o ponderador do certo e do errado. Para que se caso chegue ao momento de uma mulher sentir que não tem a mínima condição de colocar um outro ser no mundo que será de sua plena responsabilidade, ser o qual que a partir do momento que crescer sem nenhuma estrutura e errar será julgado e condenado pela mesma sociedade que o “defendeu” anteriormente, ela tenha condições de passar por esse momento difícil sem perder a vida ou a saúde física e psicológica no processo. Para que o nosso país e o nosso mundo se tornem cada vez mais distantes de Gilead.

Fotos dos movimentos organizados ao redor do mundo:

Mulheres protestam na Polônia em viagem de Trump (Foto: Reprodução)

Mulheres do grupo Texas Handmaids (Foto: Facebook Texas Handmaids/Reprodução)

Mulheres do Hollywood Handmaids protestam nas proximidades da cerimônia do Globo de Ouro (Foto: Hollywood Handmaids/Reprodução)

Mulheres protestam na Argentina (Foto: AFP/Reprodução)

Mulheres protestam nas ruas do Canadá (Foto: Reprodução)

Mulheres em frente ao STF em Brasília (Foto: Heloisa Adegas)