Daniela, 34 anos, foi espancada e morta pelo seu marido, os vizinhos fizeram 8 chamadas para polícia, que só chegou 20 minutos depois da sua morte. Tudo isso porque ela não quis entregar seu telefone para o parceiro "vistoriar".

Elaine, 55 anos, foi espancada por 4 horas após um encontro, em todas as redes sociais foi possível ver a culpabilização dela por ter levado o agressor para casa e não ele por ter a agredido.

Isabela, 19 anos, após ter deitado para descansar em uma festa, foi estuprada pelo seu cunhado. Seu namorado, ao ver a cena ateou fogo ao corpo dela, queimando 80% do seu corpo. Isabela não resistiu. 

A violência contra a mulher na sociedade brasileira cada dia mais assume níveis alarmantes, já que a cada uma hora 503 mulheres são agredidas e a cada duas horas uma mulher morre. 

Com esses dados da agressividade a qual nós, mulheres, somos submetidas, por que ainda é mais fácil acusar The Handmaid's Tale de torture porn do que aceitar que a violência existe?

Na verdade a resposta é simples, graças a uma cultura ocidental de objetificação feminina e de ignorar os acontecimentos a nossa volta, o que acontece fora da nossa bolha de privilégios, passa a simplesmente não existir. 

Não podemos ignorar que como a própria autora disse, tudo o que acontece em THT foi baseado em exemplos reais. A mutilação genital de Emily, acontece em 27 países africanos, Indonésia, Iémen e no Curdistão iraquiano, sendo também praticada em vários outros locais na Ásia, no Médio Oriente e em comunidades expatriadas, estupros acontecem a todo momento no Brasil e no mundo. Ou seja, isoladamente, a série acontece na vida real.

A segunda temporada de The Handmaid's Tale foi alvo de críticas quanto ao excesso de grafismo em cenas de estupro e violência contra as aias. "Estou na metade do primeiro episódio da segunda temporada de The Handmaid's Tale e não vou me dar ao trabalho de continuar vendo, a menos que alguém me diga que acontece algo interessante", escreveu Emily Nussbaum, da New Yorker. Já para Lisa Miller da The Cut, a série virou um produto de pornô de tortura misógina: "A violência contra as mulheres na segunda temporada é indulgente e busca satisfazer como uma resposta física e visceral em The Handmaid’s Tale, que deixou de ser uma atração de terror feminista para virar entretenimento misógino do mais convencional".

É evidente que existiram cenas impactantes na segunda temporada, o enforcamento teatral conduzido pela Tia Lydia no episódio 1, as aias tendo as mãos literalmente colocadas no fogo e o estupro do episódio 10 são exemplos de trechos que foram difíceis de assistir. Mas começar um episódio, não terminá-lo e pegar uma cena como representativa de toda uma temporada é uma coisa nada honesta. "Não é uma série que você pode dizer que é agradável o tempo todo. Muitas vezes, é um mundo difícil e difícil", comentou Bruce Miller em uma entrevista ao THR.

Na première da série, no Festival de Cinema de Tribeca, os atores enfatizaram fortemente o fato de a série ser uma história "humana", e não "feminista". "É simplesmente uma história sobre uma mulher. Não acho que seja qualquer tipo de propaganda feminista.", disse Madeline Brewer.

O que não a torna tão importante, mesmo sendo tão dolorosamente real?

Não só as cenas retratam casos reais, como também funcionam como metáforas muito boas para situações cotidianas. Qual mulher nunca se sentiu silenciada como a Ofglen sucessora de Emily que teve sua língua cortada por defender Janine? Quantas mulheres não foram culpabilizadas por algo que viram ou fizeram tiveram que voltar atrás já que a culpa, assim como com Janine com seu olho arrancado, estava nelas e não na situação?

O ponto é que assim como na série (em todas as castas, seja Esposa, Aia ou Martha), na vida real ser mulher é ser questionada. Somos sempre definidas sob o olhar masculino, como já escreveu Simone de Beauvoir, talvez não tão escancarado na série, mas de formas sutis e cotidianas.

Portanto, acusar série de exagerar ou de torture porn é simplesmente desconsiderar o fato de que a luta e a violência são reais. 

E que assim como June, adormecidos, deixando acontecer. 

Que enquanto números sobre feminicídio sobem, nós não acordamos.

Que enquanto nossos direitos são questionados, nós não acordamos.

Havia matérias nos jornais, é claro. Corpos encontrados em valas ou na floresta, mortos a cacetadas ou mutilados, que haviam sido submetidos a degradações, como costumavam dizer, mas essas matérias eram a respeito de outras mulheres, e os homens que faziam aquele tipo de coisas eram outros homens. Nenhum deles eram os homens que conhecíamos. As matérias de jornais eram como sonhos para nós, sonhos ruins sonhados por outros.

Livro O conto da Aia - Margaret Atwood

Assim, pode ser para você ficção, ou distante demais da sua realidade. Mas porque não usar esse privilégio para aprender mais tranquilamente? Do conforto do nosso sofá, ter essas lições ensinadas é muito mais fácil que sentir na pele.

Lembre-se. Não é porque algo não acontece com você ou com seu círculo de relações que ele não existe.